Existiam as estrelas e elas cantavam o
silêncio. Porque o silêncio mórbido e eterno é tudo o que as estrelas cantam. E
abaixo delas, desertos de grama, amareladas e secas, se firmavam nas expansões.
Limitados pelos mares a leste e as montanhas a oeste, os campos se se estendiam
infinitos nas outras direções. Existiam os mares verdes e doces e, quando suas
ondas alcançavam as praias de areia dourada, formavam espumas de sabão sobre
suas águas, e deixavam seus rastros de pegadas na terra. Existiam as montanhas
do outro lado e elas se chacoalhavam para retirar o excesso de neve que a atmosfera
insistia em formar para cobri-las. Assim, torrões de sal desciam constantemente
as encostas pedregosas das montanhas e impediam qualquer formação vegetal ao
redor delas.
Existiam
também as fuinhas que sempre se organizavam em fila por quilômetros até o
horizonte, e erguiam suas mãos paras estrelas e ficavam balançando-se de um
lado para outro, como os morto-vivos balançam de um lado para outro lentamente
enquanto andam. Porque as fuinhas adoram as estrelas e gostam do silêncio
eterno que elas produzem. Existiam as rosas vermelhas que se alongavam por
metros e metros nas alturas a fim de alcançar os céus. Porque todos sabem que
as florestas de rosas são apaixonadas pelo Sol e querem roubá-lo de sua dança
com a Lua por pura inveja. Existem os cisnes viajantes que voam para o norte
toda manhã e voltam pela noite. E existe o Sol e a Lua dançando seu pas de deux a cada ciclo celeste.
E
esses são os Campos Devastados, porque devastados eles sempre foram e
devastados irão continuar a eternidade. Há quem não acredita na existência de
tais campos, uma vez que o universo distorce em seus arredores e o tempo flui
inconstante. As plantas empalidecem no inverno e amarelam no outono e completam
ciclos vitais a cada dia. As águas dos rios param na terra para que as nuvens
avancem rápidas e leves no céu. E os cascalhos do fundo sempre rolam terra
acima nas cachoeiras. O som das baleias ecoa por quilômetros sendo carregado
constantemente por nada. E os ventos param, tanto quanto as brisas se
interrompem. E as estrelas se movem como a canção de aviões silenciosos. E
esses são os Campos Devastados.
Um
velho ancião acompanhado de um casal de crianças chegou ao vale e, uma vez lá,
o ancião sentou com as duas crianças a sua frente e assim declarou. “Tudo que
há aqui será de vocês e estará sob seus domínios para que façam o que bem
entenderem. Cacem as fuinhas para que tenham a carne para comer e bebam das
águas dos rios quando quiserem, pois elas são puras como todo o resto que há
nesse lugar. Lavem-se no mar para que o sabão retire os resquícios humanos que
contaminariam esse lugar e divirtam-se como quiserem por aqui. Mas nunca
cheguem perto dos cisnes, porque a infelicidade os acompanha onde quer que eles queiram ir. Pois estes são os Campos Devastados e aqui a única lei é o
equilíbrio.”
Dito
isso, o ancião se pôs a meditar e as duas crianças aproveitaram para se
divertir. Elas brincaram e brigaram várias vezes até aprender a conviver juntas
com o tempo. Elas cresceram e aprenderam a se organizar, dividindo suas tarefas
quando era necessário, apesar de que fizessem quase tudo juntas. E juntas
cresciam, e juntas se divertiam, e juntas viviam.
Por
setes mil ciclos celestes, o ancião meditou e quando finalmente terminou sua
meditação encontrou o jovem casal já adulto e amadurecido. Percebendo que
aqueles dois já conseguiam cuidar de si mesmos ele deixou os Campos Devastados
para seguir seu rumo enquanto o jovem casal percebia a cada dia mais forte a
paixão florescer entre eles. Sozinhos e sem precisar se incomodar com a
presença o ancião, eles se sentiram livres para viver o amor que possuíam, sem
vergonha dos sentimentos, sem medo de errar, sem medo de incomodar a outros.
E em
um entardecer qualquer, como o de qualquer outro dia, eles deitaram na grama do
vale e olharam para cima a fim de ver os últimos tons do manto vermelho do sol
darem lugar a cores mais escuras. “Olhe as estrelas” ele disse para ela “Veja
como elas dançam, e brilham, e dançam, correndo em destaque nas sombras da
noite.”
“Eu
vejo” ela respondeu “vejo como elas caminham solitárias por este céu noturno e
tenho pena das estrelas, tenho pena por não terem alguém que as acompanhe, e
tenho pena por serem a solidão”.
“Então
finja que elas são um sonho. Finja que o mundo é tão simples quanto esse lugar
em que vivemos. Finja que não há tristeza ou mágoa e que tudo de ruim terminará
como estrelas cadentes que cairão nesse campo para fazermos companhia a elas.
Então eu lhe pergunto: há algum outro desejo que você gostaria de realizar
agora mesmo?”
“Meu
único desejo seria viver ao seu lado como as estrelas caem no céu.”
E
naquela noite eles foram o casal mais feliz e realizado que já existiu, pois
eles se amavam. E seu amor era tão grande e tão forte que faria estrelas caírem
do céu quando assim eles sonhassem. Quando o ciclo celeste recomeçou e o Sol
reapareceu, o homem acordou e encontrou um belo e elegante cisne a alguns
metros de distância. E ele lembrava que não devia se aproximar dos cisnes, e
não lembrava o porquê. E vendo aquele animal negro, tão elegante, tão
diferente, tão belo, logo pensou em usar suas penas para fazer algum presente
para sua amada. E quis caçar o cisne, como conseguia faze muito bem com
qualquer outro animal. E coseguiu, retirando cinco penas das quais pensou em
fazer alguma coisa para sua mulher. E ele não sabia que as penas de cisnes
continham venenos mortais que se espalham no menor contato, pois os cisnes
durante o dia sempre desaparecem no norte e reaparecem quando a noite chega e ele
dorme. Quando a mulher acordou, encontrou seu amado caído como as estrelas, e
ele ainda segurava as penas para ela.
E não existia mais os desertos de grama,
nem os mares a leste ou as montanhas a oeste. E não existiam mais as fuinhas E não existiam mais florestas de
as rosas vermelhas. E não existia mais o Sol e a Lua. E não existia mais nada.
E
tudo que existia eram as estrelas, e elas cantavam em silêncio. Porque
o silêncio mórbido e eterno é tudo o que as estrelas cantam. Porque esses são os Campos Devastados, e
porque devastados eles sempre foram, e porque devastados irão continuar a
eternidade.
Enki